O "auto da compadecida" é uma adaptação muito bem construÃda da grande obra de Gil Vicente em seu épico auto da barca do Inferno. Ariano Suassuna aproveitou tão bem os argumentos pensados por Gil Vicente trazendo-os para o universo do sertão nordestino brasileiro que acabou por criar uma obra tão épica quanto o próprio Gil Vicente havia feito. Usando toda a sua criatividade, Ariano, ainda que sob o molde do grande escritor português, transformou completamente o seu auto em um produto extremamente original e único. Se apropriou do cunho satÃrico empregado por Gil Vicente e o fez convergir para a realidade brasileira do sertão nordestino. Potencializou tudo isso com os personagens clássicos do seu rico folclore e da sua história extremamente fértil e fantástica.
Tudo isso não seria o bastante para criar um filme épico não fosse a genialidade de uma equipe de atores, roteiristas e diretores de talento indiscutÃvel que juntos trouxeram a tona de forma tão natural um universo inteiro de cangaceiros, cabras-machos, frouxos, adúlteras e heróis improváveis que encontram na esperteza da mente a maior arma para vencer a pobreza, a fome e até mesmo a morte. As personagens nordestinas dão ao conceito original do auto da barca do inferno uma identificação tão forte com o Brasil que o tornaram ainda mais próximo de nos revelar algo de nós do que já era antes de Suassuna.
Tudo isso permeado pela religiosidade que assim como no auto de Vicente era o plano de fundo de toda trama das relações humanas. Não existiria forma mais original e brasileira de recriar o auto de Gil Vicente da perspectiva do Nordeste do que a encontrada por Ariano, e não existiria forma mais profissional e talentosa de transformar tudo isso em cinema do que aquela que nos deu o auto da compadecida. Clássico indiscutÃvel da dramaturgia brasileira.