A Matrix foi rebootada. Em vez de cinza, esverdeada e mecânica, ela se torna ensolarada, invadida por cores, redes sociais, cafeterias modernosas e vÃdeos de gatinhos. Passaram-se 60 anos naquele universo nos quase 20 anos que se passaram em nosso mundo.
Lana nos presenteia com uma coragem gigantesca de tocar novamente em uma trilogia praticamente sagrada, composta por uma fanbase que entendeu sua mensagem de maneira enviesada. Vejo muitas crÃticas afirmando que Resurrections não tratou de filosofia, sociologia, polÃtica etc. como fizeram seus antecessores, mas os crÃticos são os mesmos que não compreenderam esses mesmos ensinamentos.
Alguém consegue imaginar, hoje, os agentes engravatados, sérios, metódicos da antiga Matrix? Ou será que os vemos hoje por aà instagramáveis, descolados, usando lentes em armações coloridas e cÃnicos, posando como amigáveis e "gente como a gente" nas redes sociais? O Analista (ou será o novo Arquiteto?), de Neil Patrick Harris, e o novo Smith, de Jonathan Groff, são EXCELENTES nessa alegoria.
A quebra constante da quarta parede, construÃda para ser cômica e extravagante, é simplesmente a ironia exacerbada de um estúdio de engravatados forçando o lançamento de um Matrix 4 com essa mesma nova roupagem para vender. Lana, temendo que a série caÃsse em mãos erradas (a continuação seria feita de qualquer maneira), aceita a missão e traz isso à tona o tempo inteiro, não como mea culpa, mas como crÃtica ao sistema, como a série sempre fez.
Não há lacração no filme, mas as pautas estão ali, implÃcita e explicitamente, como era de se esperar da série. A trilogia foi uma crÃtica explÃcita ao capitalismo da época, e a quarta interação é outra crÃtica ao capitalismo soft descolado dos dias de hoje, que vende polÃticas sociais por ad revenue. A Matrix do nosso mundo mudou completamente, assim como a Matrix daquele universo foi rebootada. Foi genial como Lana recupera isso do final de Revolutions e transporta para nossos dias.
O John Neo Wick, pra mim, foi uma ótima sacada: Keanu Reeves é visto assim agora em nossa cultura pop, nada como ele estar representado assim dentro da Matrix, e como o conhecÃamos antes fora dela (sem cabelo e barba), que seria o seu "verdadeiro eu" fora daquela simulação.
Outra transformação foi a renovação do discurso "nós" contra "eles", tão comum e aparentemente inofensivo no inÃcio do século, mas que sentimos pesadamente nos tempos contemporâneos. Lana traz uma nova Zion, agora Io, que busca incluir e trazer diálogo. Isso sem citar o universo bem menos masculino e mais diverso, que acredito acontecer com naturalidade.
Devemos lembrar que, apesar da qualidade e da nostalgia, a trilogia Matrix era uma grande adaptação de um amontoado de mitos e arquétipos muito bem fixos e moldados. Era a Jornada do Herói tecnológica do começo ao fim, sem desvios. A Jornada, hoje, vemos sem parar em cada filme da Marvel, várias vezes ao ano, e todo o público já a compreendeu e a revive sem parar. Era preciso renovar a narrativa para essa sociedade lÃquida, pós-moderna e instantânea em que vivemos hoje.
Parabéns, Lana, pela coragem e pela brilhante capacidade de se renovar e se reinventar. Eu tenho certeza que, em poucos anos, o público voltará novamente a essa obra com novos olhos.